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Vai saber...

Valdemir Carmo

Maria Luiza acordava todos os dias muito cedo. Corria para a padaria, comprava pão e voltava rápido para fazer café aos irmãos pequenos e, de quebra, à madrasta, que só acordava bem mais tarde. Pegava, então, os livros e ia à escola. Chegava correndo para a aula e quase sempre em cima da hora.

Na escola, tinha o seu momento de lazer, pois, em casa, era só trabalho e responsabilidade. Era ela quem limpava tudo, lavava a louça, e, a cada semana, ainda passava roupa. Era só uma menina de treze anos e já tinha muitas obrigações.

Na hora do recreio, a comida era sempre bem-vinda, pois, como jantava mal e, às vezes nem jantava, a fome já era bem grande às dez horas da manhã. Quando voltava, ia desanimada, porque sabia que a madrasta lhe encheria de tarefas. E estava certa.

Naquela tarde, Maria Luiza trabalhou muito e, ao final do dia, estava demasiadamente cansada. Tanto que dormiu sem nem pensar na janta.

Outro dia na vida de Maria Luiza... Depois de deixar o café da manhã pronto para a madrasta, foi correndo para a escola, pensando se sua rotina poderia piorar. Sim, poderia. Depois do recreio, a diretora foi de sala em sala avisando que as aulas estariam suspensas até segundo aviso por causa de uma doença chamada Covid-19. Alguns alunos ficaram contentes:

 - Sem aula?  Oba!

Ela sorriu e pensou consigo mesma que talvez não fosse bom. Gostava da comida da escola: era farta e ela não precisaria aprender a fazer.

Sem poder ir à escola, Maria Luiza começou a trabalhar em casa, em regime dobrado: fazia o café, varria a casa, lavava a roupa, cuidava dos irmãos e ainda teve que aprender a cozinhar, rapidamente, para alimentar os pequenos, a si mesma, e à madrasta, que, sempre se dizia ocupada e fazia cada vez menos para as crianças. Depois de tantas vítimas pelo mundo, a Covid fez alguém ficar mais contente: a madrasta. E então, Maria Luiza ficou imaginando se sua rotina poderia piorar. Sim, poderia...

A escola informou que agora os alunos tinham que fazer lição a distância, pelo computador ou pelo telefone celular. O grande problema é que Maria Luiza não tinha computador e nem celular. O que poderia fazer? Só uma coisa: esperar o pai e lhe falar sobre a novidade. Se o pai não pudesse ajudar, talvez ela perdesse o ano. Só de imaginar ficou muito triste. Engoliu o choro, pois não se permitia chorar ou fraquejar, ainda assim, teve muita vontade de fugir dali e ser protegida... Mas, por quem? Embora seu pai fosse o mais indicado para protegê-la, ele trabalhava muito e chegava tarde a casa, já cansado. Ele nem sabia como a vida dela era tão triste e cansativa.

Quando o pai chegou, Maria Luiza foi falar com ele.  O pai pensou um pouco e disse:

- É pena, filha, mas você sabe como está difícil, estou só fazendo bicos. Com essa história de Covid, ficou pior. Ninguém está contratando nem para capinar quintal, ficam com medo de pegar a tal doença.

Ela disse que compreendia a situação do pai e o silêncio se perpetuou naquela casa.

Quando acabou o primeiro bimestre, a escola enviou uma carta. Nela esclareciam que as notas de Maria Luiza estavam em branco e com muitas faltas, afinal não havia feito as atividades. Como ela sempre foi boa aluna ficou chateada. Corria o risco de repetir o ano? Seu pai nunca mais falou no assunto e ela não queria pedir outra vez. Lembrou-se de sua mãe e pensou que se ela estivesse viva poderia ajudar. Esta semana já tinha lembrado muitas vezes da mãe. Às vezes pensava nela por horas. Ela havia morrido quando Maria era pequena e sua lembrança era de uma mãe sorridente. E só. Gostaria de lembrar mais, mas não conseguia.

Sentou na calçada de sua casa e ali ficou com sua tristeza e sua falta de esperança. E pensou se sua vida podia um dia melhorar. Poderia?

No dia seguinte, a madrasta saiu cedo sem explicações. Quando voltou, trazia um pequeno pacote em suas mãos.

- Maria Luiza, venha aqui! – A menina correu até a cozinha, já esperando ter que realizar mais alguma tarefa – Para você. Abra.

Os olhos da menina brilharam de alegria. Seria o que estava pensando?

Era. O aparelho celular significou a possibilidade de voltar a ser. A madrasta lhe disse que merecia o aparelho, pois era estudiosa e trabalhadora. E ela tinha crédito na praça, 24 parcelas, daria um jeito de encaixar no orçamento. Maria Luiza ficou surpresa e muito contente! Sempre pensou que a madrasta só queria se aproveitar dela. Que era uma folgada que não fazia nada o dia todo. Talvez ficasse sempre ocupada mesmo, com outras tarefas que ela não reconhecia existirem. Sentia ciúmes de seu pai e uma falta tão dolorida de sua mãe que a presença da madrasta sempre lhe parecia uma afronta. Contudo, talvez fosse só uma pessoa comum, com seus defeitos e qualidades. Não se tratava da madrasta dos contos de fadas.

“Ou minha mãe intercedeu por mim lá do céu. Vai saber”...

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Arte: Valéria Aveiro

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