
Inimigo invisível
Marcos Moreira
Acordo com o relógio vibrando freneticamente no criado-mudo. A música irritante e repetitiva só cessa quando desligo o alarme do celular. Quinta-feira, cinco da manhã. O sol sequer nasceu. É o horário que acordo toda quinta a fim de comprar mercadorias para minhas três boutiques. Ou pelo menos era, antes da quarentena.
Sem sono, ligo a TV. Jornal às cinco? Onde foram parar os Telecursos? E lá vêm eles: Covid-19. Tantos mil mortos, mais não sei quantos infectados. Sistema de saúde em colapso. Isolamento social, quarentena prolongada, comércio fechado, economia na UTI. E eu me pergunto: quem ganha com essa histeria toda?
Simplesmente, não posso acreditar que uma gripezinha importada da China faça tanto estrago! E as evidências de caixões vazios sendo enterrados, de pessoas que morreram de infarto e receberam diagnóstico de coronavírus no atestado de óbito...? Dizem ser fake news. Mas e as mortes, a histeria e tudo o mais, não podem ser fakes? Cada um escolhe as verdades e mentiras que lhe convém.
Mas, enquanto políticos ganham dinheiro superfaturando a compra de máscaras e respiradores, que sequer funcionam, eu permaneço com minhas boutiques fechadas. A TV diz para os empresários tentarem acordos com funcionários, evitar demissões. Contudo, sou eu quem não viaja para Orlando este ano!
Despedi dez das vinte e cinco funcionárias. Elas já podem receber o seguro desemprego e os seiscentos reais do governo. As outras estão trabalhando em home office, vendendo on-line o restante da mercadoria em estoque. Mais do que justo. E quando tudo acabar e as vendas voltarem ao normal, contrato dez novas funcionárias para repor as antigas, pela metade do salário!
A vantagem de não precisar ir às confecções do Brás comprar mercadoria é não ter que lidar com aquele bando de coreanos e chilenos falando enrolado! Mas o que posso fazer? Não fosse o subemprego dessa gente miserável, não conseguiria comprar roupas tão baratas e meu lucro diminuiria horrores! Ainda assim, essa visita semanal, desagradável, faz valer cada centavo do preço altíssimo que cobro pelas roupas vendidas em bairros nobres. Mas confesso: ficar de quarentena sem poder ir a festas, passear no shopping e jantar em bons restaurantes, está me deixando louca! Então, Chérie me dá a desculpa ideal para sair de casa. Ela vem latindo fino, fazendo manha, e me dou conta que sua ração acabou.
Desço de elevador, atravesso a portaria. O porteiro me olha feio, provavelmente, por eu estar sem máscara. Porém, me recuso a usar aquela coisa horrorosa e sair por aí com orelhas de abano.
Há uma lojinha na esquina em que posso comprar ração. O preço é o triplo por causa do bairro. Melhor do que enfrentar as filas no supermercado. Não que tenha medo de ser contaminada ou alguma bobagem dessas, só não quero estragar meu dia com aglomeração de pobres, comprando papel higiênico para estocar em casa! Prefiro pagar mais caro e, quem sabe, sentir o sol das nove aquecer minha pele já pálida de tanto isolamento.
Mal chego à porta da loja, porém, escuto o alvoroço:
– Ridículo! Imagina, deixar de me vender por eu estar sem máscara!
– Minha senhora, é a lei! Decreto estadual. Está na placa em frente à loja.
– Decreto uma pinoia! Tenho meus direitos! Meu marido é advogado e vai fechar essa espelunca por vocês se recusarem a me vender!
Ouço o toc-toc do salto alto pisando duro na cerâmica e logo ela sai porta afora.
– Rebecca.
– Safira, querida. Viu a ousadia dessa gente? Exigir que eu, justo eu, use máscara! Vivemos onde? Em Cuba? Deixe estar! Quando eu for protestar sexta na Paulista, faço questão de levar um cartaz “detonando” essa espelunca.
Eu tentando me livrar, e a maluca barrando a entrada da loja, aos gritos:
– Vou detoná-los no Instagram e quero ver mais alguém comprar aqui. VOCÊS OUVIRAM? Bando de... de...?
De repente, para de falar e se volta para mim. Sua expressão se transforma numa careta horripilante, revelando a teia de rugas que acredita esconder com as constantes aplicações de botox. Sem mais nem menos, ela inclina a cabeça para frente e dispara:
ATCHIM
Uma chuva de perdigotos atinge minha face. Eu fecho os olhos, enxugo o rosto com a manga da blusa, enojada, horrorizada!
– Meu amor, me desculpe! Estou com a rinite atacada.
Eu mal a ouço. A deixo falando sozinha e corro na direção de meu apartamento, quase sem abrir os olhos. O elevador demora uma eternidade até chegar à cobertura. Sigo em direção à suíte. Encaro o reflexo no espelho. A vermelhidão no rosto: será que já estou com coriza ou é por que esfreguei demais a manga da blusa depois que aquela... aquela mulher me...?
Tento me recordar do noticiário. Quais eram os sintomas, mesmo? Dor de cabeça, tosse, cansaço, febre... E eu sequer tenho álcool em gel em casa. Imerjo o corpo na banheira e me esfrego como nunca antes!
Saio da banheira. Os dedos enrugados pelo excessivo tempo embaixo d’água. Pego as roupas, das quais me despi antes, pelas pontas dos dedos e as coloco no lixo. Volto ao banheiro e lavo as mãos por mais cinco minutos consecutivos! Passo a tarde pesquisando na internet, assistindo jornais, chorando compulsivamente. E não sei em que momento, adormeço.
Três horas da manhã. O alarme do celular não toca. Nem precisa. Acordo banhada em suor. Um calafrio percorre minha espinha. Sigo nauseada e ofegante em direção à dispensa. Apanho o aparelhinho plástico e coloco sob a axila. Os segundos se arrastam até ouvir o apito. Eu o seguro, entre o indicador e o polegar, e o subo até a altura dos olhos. Encaro o mostrador digital e o mundo ao meu redor desmorona ao ver o que o termômetro afere:
Quarenta graus Celsius!

Arte: Angelita Oliveira