
Quinze
Marcos Moreira
“Não mofes dos meus quinze anos, leitor precoce.”
Machado de Assis
Dandara Silva nasceu no dia quinze de abril, às quinze horas, chorando a plenos pulmões, o obstetra a suspendendo no ar enquanto lhe cortavam o cordão umbilical – sua última ligação com a vida intrauterina. Mas não foi logo para casa. A mãe, fumante compulsiva, deu-lhe de presente um nascimento prematuro, 15 dias na incubadora e uma asma que a acompanhou pela infância e adolescência.
Ao completar quinze, esperou a mãe chegar em casa com o presente singelo que havia lhe prometido. Estava entediada com o recesso escolar antecipado em isolamento, cuidando dos três irmãos mais novos que estavam, igualmente, em casa, sem escola para ir.
No começo do sexto ano, sentia-se insegura consigo mesma, as mudanças no corpo, os padrões impostos pela indústria da beleza em contraste com seu reflexo no espelho. Ia de cabelo preso para a escola, presa ao medo de se aceitar como era. Tentou transformar-se, esconder-se por trás de mechas soltas, da falsa sensação de aceitação que a chapinha lhe proporcionava. Mas ao fim do nono, deu de ombros aos padrões e deixou-se encrespar na vida, o cabelo armando-se à medida que o orgulho de si mesma aumentava.
Mal a mãe chegou em casa, a garota foi ao seu encontro, apanhou sem cerimônia o objeto que a mãe lhe estendeu e, sorrindo alegremente, correu para o banheiro. Dandara lavou as madeixas debaixo do chuveiro e seguiu para o quarto, dominando o ambiente que dividia toda a noite com a mãe e os irmãos. Lá, sozinha diante do espelho, deu início ao ritual: dividiu o cabelo em chiquinhas e foi untá-lo com creme. Enquanto o cabelo secava naturalmente, apanhou o presente dado pela mãe. Não conseguindo rasgar a embalagem manualmente, foi rasgando o plástico com os dentes como um filhote que aprende a devorar suas presas. Então ergueu ao alto o instrumento em suas mãos.
Ficou vislumbrando por um momento o objeto. Seu cabo de plástico roxo e os dentes de metal reluzindo à luz da lâmpada fosforescente a encantaram. Mais do que um simples pente garfo, aquele era um símbolo de sua autoaceitação, de sua autoestima recém restituída.
Alegre, ela começou o movimento com o garfo no cabelo, armando-o o máximo que conseguiu.
Sentia-se deslumbrante.
Vestiu-se e maquiou-se como se fosse para a balada. Fincou os dentes de metal do garfo dentro do emaranhado de seus cabelos, ostentando acima de seu Black Power o cabo de cor púrpura. E tirou uma infinidade de selfies postando nas redes sociais e deliciando-se com cada like que ganhava. Aquele era seu dia e nada podia estragá-lo.
*****
Quinze dias depois, começou com uma tosse seca que nem a bombinha que usava para controlar a asma foi capaz de conter. Seguiu-se a febre, dor de garganta, diarréia e a internação no Centro de Terapia Intensiva, onde foi intubada. Ela não tinha sonhos ambiciosos. Não sonhava em ser médica, astronauta ou presidente da república. Queria apenas sentir-se bonita, concluir o Ensino Médio e, quem sabe, dar seu primeiro beijo no menino que gostava desde o sexto ano. Não eram sonhos ambiciosos, mas eram grandes, pois eram os únicos que tinha.
Dandara Silva engrossou as estatísticas: tornou-se a décima quinta vítima a morrer de Covid-19 na região do ABC.

Arte: Marcos Moreira