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Sons da quarentena

Valéria Aveiro

– Silêncio! Chiiiiiiuu!

Acordei, é verdade. Estou atrasada, tenho que me conectar com a reunião de trabalho via celular, devo ouvir. Não dá tempo de escovar os dentes. “Aumentem o som, por favor”, solicita o colega aflito no chat em que correm mensagens infinitamente! São 120 mensagens por minuto, duas por segundo.

–Não digam mais “bom dia”, por favor. Não é preciso dizer bom dia! Não é possível ler o essencial em meio a tantas saudações! – manifesta-se o secretário, cansado da insistência do dizer de quem não tem nada a dizer. A reunião segue e o chat passa a ter três missivas por segundo, as de “bom dia” e as de “não precisa falar bom dia!”

Enquanto isso, giro a tela do celular para ver a imagem ampliada e não acompanhar mais a enxurrada de conversas que me esvaziam. Alguma mensagem de reflexão e questionamento produtivo jamais será ouvida. 

A reunião se encerra. Estou muito cansada e as costas doem, mas preciso redigir minha agenda e planos para a próxima semana. Então vou até o computador e digito “tec, tec, tec, tec...” o teclado soa infinitamente, a barra de espaço parece ditar o ritmo, mas o contínuo das letras nas teclas é o que dá a sensação de folha cheia, produção, ainda que às vezes irrite. 

Para não ouvir, coloco o fone e ponho para tocar a minha playlist, um oásis!

–Mãe, o que é maior, sete oitavos ou três quartos?

–Três quartos, meu filho, se eu me lembro... Pense em uma pizza... “Eu amei te ver! Eu amei te ver! Eu amei te ver!”

–Mãe! Não entendi!

–Desculpa, é que eu queria ouvir Thiago Iorc... Deixa para lá! Pensa em um círculo, o que é maior, dividir em 8 e pegar sete pedaços ou dividir em 4 e pegar 3?

– É de calabresa, mãe. Não quero dividir!

– Faz a conta vai! Não tenha preguiça! Transforma em número decimal e...

– Cris! Está na hora da minha aula de zumba, empresta o celular? – E segue a loucura. A sala está cheia. Porém, somente o meu aparelho móvel tem memória para suportar o aplicativo. O de mais ninguém! 

“Wo-oh, oh-oh

Báilame como si fuera la última vez

Taki taki

Taki taki, rumba”

E os pulos estremecem a casa. A sala tem piso de madeira, antigo, os móveis ameaçam tombar! Mas ainda bem que a alegria toma conta do ambiente!

“Trinta ovos, dez reais” – o carro e seu alto-falante sobem a rua.

Eu preciso gravar a minha videoaula, mas o cachorro não para de latir! O que eu faço?

O ouvido inflama, a cabeça dói!

Na TV o jornalista notifica “O Brasil passou a Itália em número de mortes na quinta-feira e é o 3º com mais vítimas do coronavírus no mundo”. Haja concentração! “No contexto da pandemia de covid-19, os atendimentos da Polícia Militar às mulheres vítimas de violência aumentaram 44,9% no estado de São Paulo”.

O ouvido entope, escorre, coça, purga, reclama! É preciso pôr os panos quentes! Mas as vozes ecoam “A polícia vai apurar se a presença de bandeiras com símbolos também usados por neonazistas foi o estopim para o confronto...”

Na live a professora fala para as crianças se concentrarem no exercício. "Vale nota!"

Cachorro late de novo e a criança espirra! Mais um vídeo perdido. Vamos recomeçar a gravação! Ah, não será possível agora! O vizinho me chama da janela. É transplantado, não pode se arriscar! Deve estar precisando que eu leve pão. Espera!

E então eu escuto a melodia de solidariedade brotando em meio ao estopim da bomba de gás lacrimogêneo. A voz gravada, a voz abafada, cortada... Falhou o sinal!

Ei, psiu! Faça silêncio! Eu preciso pensar!

***

PI, PI, PI, PI... Monitor de sinais vitais, choro.

U-IIII, U-IIII, U-IIII... A ambulância desceu a rua. Nossa! Esqueci o pão do vizinho! Meu ouvido? A dor já chega ao meu coração. Estão todos falando, falando, falando! Esse barulho é avassalador! Desliguem o rádio! Não aguento mais essa reza!

BIP, BIP, BIP... Batimentos cardíacos no monitor.

Sussurros, o ar é inspirado, mas ele não vem... Não vem... Onde está a inspiração?

–Afastem-se, prepara, 300 volts! 1, 2, 3... TZZZZZZZ...TZZZZZZZ...TZZZZZZZ

 

Silêncio.

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Arte: Júlia Pessoa

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